Fortaleza é a capital do estado do Ceará, localizada na região Nordeste do Brasil. Com mais de 2 milhões e 400 mil habitantes, é uma das cidades turísticas mais procuradas do país, e a quinta maior em termos de população. Entre seus principais atrativos estão a orla marítima e o clima quente e ensolarado na maior parte do ano. A desigualdade social, porém, é um fator alarmante, pois, contrastando com os hotéis luxuosos localizados na Praia de Iracema, a periferia sofre com a violação de direitos básicos. 43% da área da cidade, por exemplo, não têm sequer cobertura de esgoto.
Em um desses locais fica a comunidade Poço da Draga, nas proximidades de uma grande obra do governo do Estado, o Acquário Ceará. Com a justificativa de potencializar o turismo na capital, será investido mais de R$ 280 milhões na obra, o que levou à criação do movimento “Quem dera ser um peixe”, que contesta o grande volume de recursos e irregularidades no projeto. O nome faz referência a uma música do cantor popular cearense Fagner e dá a entender que os animais que viverão no Acquário serão mais bem tratados que a população pobre de Fortaleza.
Outro amplo investimento realizado na capital foi a reforma do estádio Plácido Aderaldo Castelo, conhecido como Castelão, que recebeu mais de R$ 518 milhões. As obras fizeram parte dos preparativos para a Copa do Mundo da Fifa em 2014. O estádio foi o primeiro a ficar pronto para o mundial, e receberá seis partidas, entre elas Brasil e México no dia 17 de junho e a disputa entre as seleções da Alemanha e Gana, no dia 21.
Também dentro do universo de preparativos para a Copa estão as obras ligadas a mobilidade urbana que tem gerado vários processos de remoções em Fortaleza. O evento também pode aumentar os índices de exploração sexual, problema sério enfrentado pela cidade, rota do tráfico mundial de pessoas. Esta reportagem busca traçar com esses e outros elementos um retrato de Fortaleza como uma das cidades sedes do mundial.
Tinha uma comunidade no caminho
Para sediar a Copa do Mundo os países sede se comprometem a realizar obras urbanísticas e de infraestrutura, além de adequar serviços e outros aspectos aos padrões de qualidade exigidos pela Fifa. No Brasil, os projetos envolvem desapropriações de comunidades inteiras, fazendo com que famílias saiam dos seus locais de origem. O Comitê Popular da Copa da cidade de Fortaleza é apenas um dos doze no país que se articulam desde 2009 para combater as violações de direitos envolvidas nesse processo. A mobilização fez surgir a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), um coletivo de organizações e movimentos sociais, além de afetados pelas obras, explica o jornalista Roger Pires, integrante do Comitê em Fortaleza e do Nigéria Comunicação e Audiovisual, coletivo independente com atuação no Ceará.
“É a Copa que ninguém vê”, afirma Roger. “Colocamos em xeque o modelo de desenvolvimento adotado pelo Governo Federal que prega crescimento econômico, mas passa por cima do meio ambiente, das pessoas e não olha para o futuro”, afirma o jornalista. Segundo ele, o poder público não divulga com clareza a quantidade de famílias removidas para o evento, apenas estimativas. Em Fortaleza, pelas contas do Comitê, são 5.500 famílias entre removidas e ameaçadas de remoção. No total, seriam 20 mil pessoas, incluindo as comunidades do Alto da Paz, localizada no bairro Vicente Pinzón, e a do bairro Serviluz. Essas comunidades passam por processo de remoção justificadas pela necessidade de obras que não fazem parte dos projetos oficiais relacionados com a Copa. O plano para esses locais é de construção de novas residências, planejamento questionado por especialistas em direito à moradia,segundo informações de um relato de uma audiência pública promovida pelo Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Ceará, em fevereiro. No Brasil, um total de 250 mil pessoas já foram ou estão sendo removidas de suas casas, de forma voluntária ou não, segundo estimativas da Ancop.
A dificuldade em quantificar o número de famílias removidas também é ressaltada por Patrícia Oliveira, advogada da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap): “É um dado que muda muito. Às vezes dentro de um processo judicial de licitação eles mudam e não informam exatamente quantas pessoas devem sair”. Segundo Patrícia, a inconsistência desses dados acaba enfraquecendo a resistência comunitária.
Para ela, a proposta do governo é sempre remover mais famílias do que o necessário. Além disso, não há diálogo com a população que será afetada diretamente pelas obras. A advogada também denuncia que há projetos engavetados e que, aproveitando-se do clima de preparação para o megaevento, acabam sendo incluídos no “pacote”. “Trata-se de um grande jogo político para injetar dinheiro na economia e favorecer quem já ganha com isso, como as construtoras e empresas da área de turismo”, analisa.
O legado também é questionado pela advogada. “O evento já está para acontecer e a população já entendeu que não vai ficar muita coisa pra ela”, afirma. Patrícia acredita que várias obras não ficarão prontas até o evento, inclusive o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) uma das grandes promessas do Governo Estadual.
Resistência comunitária
O artesão Ivanildo Lopes é uma das lideranças da Comunidade Lauro Vieira Chaves (LVC), que fica no bairro Vila União, onde vive há 47 anos. Essa é uma das vinte e duas comunidades que estão no caminho do VLT. Nascido e criado no local, o artesão recebeu em julho de 2010 uma carta do Governo do Estado do Ceará convocando ele e outros moradores para uma reunião. Lá, foram informados de que suas casas haviam sido fotografadas e medidas e que seriam retiradas do local para a realização das obras.
“Imediatamente nos organizamos para discutir essas condições, pois nós não havíamos sido convocados para debater nada com o Governo, apenas fomos informados sobre o que aconteceria. E queriam pagar muito pouco pelas casas”, lembra Ivanildo, que conta que alguns vizinhos receberam ofertas de até R$ 3 mil. A casa do artesão foi avaliada em R$ 12 mil, mas como não há escritura do terreno, ele só receberia R$ 8.900. O valor era bem menor do que os R$ 40 mil esperados pelo proprietário. “Minha casa ficava numa avenida, só isso já valoriza muito o imóvel”, defende.
Essas casas já foram derrubadas e as obras do VLT no local seguem. Por outro lado, Ivanildo comemora pelo menos três conquistas da comunidade ao longo desses quatro anos: o Governo alterou o traçado do VLT, diminuindo a quantidade de famílias removidas. Os donos de casas avaliadas em até R$ 40 mil, além da indenização, passaram a ter direito de receber um apartamento quitado. E a terceira conquista foi que o apartamento em questão ficará no mesmo bairro onde ficava a comunidade e não há 14 km de distância, como estava na proposta inicial. “Descobrimos um terreno baldio que ficava há três quarteirões, e que pertencia à prefeitura. Então estado e município negociaram a área e agora estão construindo os apartamentos, previstos para ficar prontos em 2014”, conta.
Para o estudante Gabriel Matos, 14 anos, também morador da comunidade LVC e integrante do Comitê Popular da Copa, a mobilização é importante para dar visibilidade ao que ocorre nas comunidades atingidas. Ele produz conteúdo para um blog, além de vídeos com entrevistas de moradores da região. O material é exibido mensalmente em um cine clube realizado na rua para crianças e adolescentes do bairro. A casa de Gabriel estava prevista para ser removida no início do projeto do VLT, mas foi salva com as mudanças que ocorreram. Para ele, que gosta de futebol e pretende torcer pelo Brasil nos jogos, o megaevento não é razão para festa: “Não importa se a Copa será realizada aqui em Fortaleza ou na China. Minha família e eu não temos condições de comprar ingressos e ir ao estádio, então de qualquer forma veremos pela televisão”, diz o adolescente. “Para nós, o legado dessa Copa é só tristeza”.
A Secretaria de Infraestrutura do Estado do Ceará (Seinfra), por meio da assessoria de imprensa, informou que são estimadas 2.185 desapropriações de imóveis para as obras do VLT, mas que esse número muda todos os dias em virtude de mudanças no projeto, definições que ainda precisem ser feitas, acesso das equipes de cadastro e laudo às comunidades resistentes, entre outros aspectos. A previsão inicial era de três mil desapropriações. O número de imóveis atingidos não é igual ao número de famílias indenizadas, pois existem inquilinos, proprietários, posseiros, ocupantes e outras variações de beneficiados.
Orçamentos
O valor investido nas obras do VLT, segundo a Secretaria, é de R$ 273,9 milhões, R$ 8,4 milhões a mais que o orçado inicialmente, e a previsão é de que comece a funcionar em 31 de maio de 2014, a tempo do mundial de futebol. O projeto, com obras iniciadas em abril de 2012, deveria ter sido entregue no final de 2013. Já as obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo, de responsabilidade do município, segundo a Prefeitura de Fortaleza, somam R$ 292,42 milhões em investimentos e 585 desapropriações previstas. O projeto mais avançado, O BRT (Bus Rapid Transport) da avenida Alberto Craveiro, está com 97,90% das obras concluídas e tem previsão de ser entregue ainda em maio deste ano. Já o projeto com menor andamento, o BRT da avenida Dedé Brasil, tem apenas 9,11% concluído. A nova meta da prefeitura é entregar 10% deste projeto, que foi iniciado em setembro de 2012, até o mundial, e o restante da obra em 2015.
A ampliação do Aeroporto Internacional Pinto Martins e do Porto do Mucuripe, projetos do Governo Federal, ainda não estão concluídas. Segundo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), o aeroporto seria entregue em duas partes, uma antes da copa, e uma em 2017. Segundo declarações recentes do ministro-chefe da Aviação Civil, Moreira Franco, o terminal é o único no país que precisará de plano alternativo, pois as obras não ficarão prontas antes da Copa. Para receber os passageiros durante o mundial, um terminal remoto temporário, que custou R$ 1,79 milhão aos cofres públicos permanecerá ativo durante 90 dias. O investimento da primeira fase da obra e o do terminal provisório somam R$ 170,88 milhões.
Segundo a assessoria do Porto do Mucuripe, em fevereiro deste ano, as obras de ampliação estavam 86,2% concluídas e a previsão de entrega é em maio de 2014. O valor investido é de R$ 205 milhões.
A democracia em jogo
Fortaleza também foi uma das cidades que participou ativamente das manifestações de 2013, conhecidas como jornadas de junho. Nos conflitos entre manifestantes e a polícia, o vinagre virou acessório para cessar o efeito do gás lacrimogênio. Segundo relatório da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, que acompanhou as manifestações em Fortaleza nos dias 20 e 27 de junho de 2013, ao todo foram apreendidas 163 pessoas.
A advogada da Renap, Patricia de Oliveira, chama a atenção para as apreensões de menores de idade, marcadas por atos truculentos por parte da polícia. Foram 14 adolescentes apreendidos somente no dia 20 de junho de 2013, sem provas suficientes e palpáveis, por policiais sem qualquer tipo de identificação e alguns à paisana. Quando solicitados, os oficiais se negaram a identificar-se. O documento denuncia ainda abusos cometidos pelos policiais, que vão desde agressões físicas e verbais até uma garota revistada de forma libidinosa por militares, mesmo após solicitar que a revista fosse feita por uma mulher. Para a advogada, embora tenha havido abusos cometidos de forma individual pelos policiais, muito do que ocorreu é institucional, pois faz parte da própria estratégia da polícia para reprimir as manifestações.
Os registros dos manifestantes feitos por meio de câmeras portáteis e celulares inundaram a Internet. Enquanto cobria as manifestações em Fortaleza no dia 20 de junho, o jornalista Pedro Rocha, do Coletivo Nigéria levou um tiro de bala de borracha no olho. No dia da semifinal da Copa das Confederações, parcialmente recuperado da lesão, Pedro estava novamente nas ruas documentando os conflitos. Foi detido nos arredores da Arena Castelão, estádio onde ocorreram os jogos da Copa das Confederações e onde serão realizados os da Copa do Mundo, em Fortaleza. Ele estava junto a um companheiro de trabalho e outros manifestantes no momento da abordagem. “Eles ‘renderam’ um grupo e ameaçaram atirar à queima-roupa em nós – e, de fato, atiraram em um dos manifestantes - nos xingaram, pediram para que esvaziássemos nossas mochilas e depois nos colocaram junto com outros”, relata. Os registros de junho de 2013 deram origem ao documentário Com Vandalismo, disponível no canal no You Tube do Coletivo.
Após a Copa das Confederações, houve repressão em outras manifestações que ocorreram em Fortaleza. “Tivemos casos de atos pacíficos após os jogos da Copa das Confederações que também foram reprimidos com bala de borracha e gás lacrimogênio, o que mostra que o nosso país nunca perdeu as características arbitrárias da Ditadura”, analisa Patricia de Oliveira. Ela chama ainda a atenção para o investimento feito em material bélico para essas repressões, que não são divulgados pelo poder público, e que poderia ser investido em saúde, educação e moradia digna para a população de Fortaleza.
A repórter entrou em contato com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) para falar sobre as denúncias do ano passado e estratégias de segurança para a Copa de 2014, mas até o fechamento desta matéria não obteve resposta. Na ocasião, a Secretaria também não se pronunciou a respeito do investimento em armamento não-letal.
Megaevento e os riscos de aumento de abusos, exploração sexual e tráfico de pessoas em Fortaleza
Fortaleza detém altas taxas de abuso e exploração sexual, além de ser uma das principais rotas do turismo sexual internacional e tráfico de pessoas no Brasil. Com a realização da Copa, o desafio de combater esses crimes ficou ainda maior, pois além da chegada de turistas, há o aumento da população masculina que trabalha nas obras. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) prevê que a Copa do Mundo gerará o aumento de 5,5 milhões de turistas, que visitam anualmente o Brasil, para em torno de 7,2 milhões.
De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF 2002), maior estudo realizado sobre o tráfico no país, Fortaleza está entre os principais locais de origem das vítimas do tráfico. No Ceará, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Justiça (Netp) identificou 22 casos em 2013 e três casos em 2014.
Para a advogada e técnica do Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, Magnólia Said, a realização do megaevento pode criar mais oportunidades para criminosos e uma das razões é uma rede de proteção às vítimas que age de forma frágil e pulverizada no estado. A cultura machista no país, que ainda prega a beleza da mulher brasileira como um produto agregado dos pacotes turísticos, mais a fragilidade sócioeconômica da população também contribuem para esse cenário.
“O tráfico está diretamente ligado à situação de pobreza, o que deixa o Nordeste ainda mais vulnerável", afirma Magnólia. O Ceará ocupa a 17ª posição no IDH por estados do país, de acordo com o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2013. Para Said, é necessário uma mudança radical na educação, para aumentar a autoestima e autonomia das mulheres e promover relações de gênero mais igualitárias. Porém, segundo a avaliação da advogada, o que ocorre são baixos investimentos para acabar com esses problemas, enfraquecendo os programas e planos que já existem, e resultando em ações pontuais. “No carnaval nós vemos uma peça publicitária na televisão e alguns cartazes estimulando que as pessoas denunciem, mas e depois? É preciso fazer muito mais para mudar esse cenário, trabalhar essa questão com a população na escola e na mídia durante o ano inteiro,” critica.
Sara Luiza Moreira, integrante da Marcha Mundial das Mulheres e coordenadora de equipe do Esplar, afirma que o megaevento pode ser um estímulo para que mulheres do campo venham à capital para se prostituir. “A gente fica sabendo de meninas que falam em ficar bonitas para a Copa do Mundo, que querem vir à capital para trabalhar e poder enviar dinheiro às famílias. Tememos que elas acabem vítimas de abusos”, explica Sara, reforçando que o sonho de encontrar um príncipe encantado e de uma vida melhor no exterior também influencia o imaginário de meninas e mulheres, o que pode torná-las vítimas do tráfico de pessoas.
Para Magnólia, a rede de denúncia e proteção é desarticulada, frágil e inconsistente no estado, o que impossibilita resultados satisfatórios. “Às vezes a própria autoridade que recebe a denúncia de violência, abuso, exploração ou tráfico desencoraja as vítimas ou as culpa”, critica. No Ceará, só existem nove Delegacias Especializadas da Mulher. O equipamento deveria estar presente em pelo menos 23 municípios, segundo lei estadual”.
A assessoria da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos informou que desenvolve políticas para as mulheres e ações de prevenção e enfrentamento à violência, dentre elas, o enfrentamento ao tráfico de pessoas, seguindo planos e programas federais.